terça-feira, 17 de maio de 2016

Um Dia Comum Para Despedidas


Loas são comumente evocados para trazer proteção ou cura para os enfermos mais estimados. Oferendas são metodicamente postas nas encruzilhadas, onde se acredita que os mortos perambulam e fazem a passagem do mundo material para o espiritual.

Já nas catacumbas abaixo da cidade de New Orleans, um rato se esgueira por entre um punhado de osso, o animal robusto tem certa dificuldade em passar por um buraco, menor que seu tamanho e ele almeja chegar ao ar puro noturno que um cemitério costuma possuir. 

Primeiramente um pé esquerdo era notado pelo rato, arredio ele se afasta olhando para a figura do homem descalço. Agora o animal parecia referenciá-lo, pois curiosamente reconhecia o homem negro, o vira balbuciar algo enquanto girava entre os dedos uma conta de seu colar. Depois o rato continua sua jornada até um beco escuso para se esbaldar em alguma lixeira e suas sobras... Já, o Barão é lembrado precisamente pela boa aventurança na acolhida dos mortos ou em casos corriqueiros quando um relacionamento não vai bem das pernas e é lembrado. 

Posteriormente, o Barão aparece em uma dessas lápides do cemitério, ele está de cócoras observando o serpentear das chamas naquela noite fria. As meninas dos olhos refletem as chamas das velas, o rosto pintado como uma caveira faz um sorriso de satisfação florescer a face do homem negro. O Barão prontamente desce da lápide levando a mão até o um dos crânios perdido ali, sem a mandíbula, depois leva a própria face até o que resta da boca cadavérica e a beija de forma cúmplice. 

O Barão coloca delicadamente a caveira em seu repouso e volta caminhar pelo jardim dos mortos. Ele traja um terno elegante, daqueles que os defuntos vestem no dia de sua despedida para com seus entes queridos, uma bengala em mãos e em contraste os pés sempre descalços. Ele olha para os nomes gravados no cimento frio, se recorda da conversa que teve com cada uma daquelas almas, algumas delas aceitavam a sua sina de bom grado, pois são boas almas que dava gosto de se conversar, outras ainda apegados ao Plano Material desacreditadas enlouqueciam e restava ao Barão confortá-las. Algumas outras estavam simplesmente condenadas por seus atos.

O homem negro volta sua atenção para a lua e logo um belo cântico toma conta da região. Alguns rostos são avistados pela luminosidade das velas, se nota tristeza em suas faces e em outras se vê ternura. Ali estão sua maioria haitianos que sobrevivem duramente nos subúrbio da cidade. Comunidade essa onde o sèvis gine é exemplarmente praticado e execrado por outra religião dominante. Tolos mal sabem da verdade, o Barão ri sabendo de suas certezas, se recompõe prestando atenção nos dizeres daquela procissão. Eles o convidam para ter com ele, O Barão sorri atendendo àquele chamado e tenta passar despercebido, curioso em ver quem era o novo defunto.

Gira sua bengala entre os dedos, para depois encostá-la ao chão e apoiar-se para pegar algo em um de seus bolsos. Um charuto enrolado na coxa de uma senhorinha negra de um país vizinho dos ali presentes. Safra boa que faz até o Barão o cheirar e depois usar uma vela acesa para acendê-lo. Três tragadas foram suficientes, logo em seguida ele abaixa o charuto e solta a fumaça com um prazer ímpar.

A fumaça por sua vez expande e o turva graças a sua natureza sobrenatural. Pura magia que facilmente passaria despercebida para os olhos dos leigos, se não fosse uma garotinha de não mais que seis anos de idade o observando. A criança por sua vez chama a atenção de sua mãe, ela puxa a saia florida que a mulher vestia.

-Olha mamãe, o Barão!!!

O Homem negro leva a mão até a boca e faz sinal de silêncio, a garotinha assente com a cabeça tampando a boca e depois ri acenando. A mãe a coloca no colo e chega a olhar na direção que o Barão verdadeiramente estava. 

-É, é o barão, filhinha...

A mulher não havia visto verdadeiramente o homem com o rosto pintado de caveira, mas pela fé tinha certeza que ele os acompanhava naquele momento de despedida. Ela agora beijava a testa da criança e continuava cantando à medida que uma lágrima escorria pela face.

O Barão havia escalado uma das catacumbas e aguardou sentando-se no parapeito da estrutura, onde gárgulas são vistas com suas caretas. O coveiro já acostumado com as coisas estranhas que aparecem no cemitério apenas sorri para o homem da catacumba. Uma leve brisa percorre as pessoas fazendo as chamas tremularem brevemente.

-Sabe? Aquela menininha é a minha neta...

O Barão vira a cabeça para o homem, olha na direção da criança e o convida para se sentar ali.

-Não se preocupe, senhor... Saiba que ela será uma mulher bastante forte no futuro? Deviado a sua criação.

O senhor de cinquenta e sete anos olha para seu caixão sendo fechado, ele vislumbra que seu velho companheiro de guerra estava lá. O amigo no momento de sua morte pediu para que visse seu enterro. Ele olha para seus familiares e amigos, ele leva a mão até o coração como um gesto simbólico de ter cumprido sua missão. 

-Não se preocupe, é hora de deixar os vivos viverem!

O Barão aponta para si mesmo apagando o charuto e depois se levanta.

-Sei que é difícil largar os vícios da carne, mas você levou uma boa vida e compreenda que será bem vindo lá, meu caro saxofonista! 

O avô esfrega os olhos e caminha na direção do Barão, esse já estava de braços abertos e o recebe com um abraço forte. O senhor de idade era uma daquelas almas boas de estar presente, mas seu corpo estava calejado do viver. Nas ultimas semanas ficara internado em uma UTI e morrera recentemente.

-Obrigado meu bom senhor, Barão de Samedi!

Gradativamente a alma do avô vai desaparecendo para o além-túmulo. O Barão por sua vez volta a caminhar por entre as lápides, ele recolhe uma estatueta sua, cuja imagem o representa usando uma cartola e depois faz uma caricia nela como agradecendo a pessoa pela oferenda.

-Hum, nada mau, nada mau mesmo! hehehe

O Barão sorri chacoalhando a bengala e dizendo algo em haitiano. Prontamente uma cartola aparece em sua cabeça. A noite havia só começado e seu trabalho não o deixava descansar, mas fazia tudo aquilo com muito zelo e desaparecia com aquele luar...

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